terça-feira

Empoderamento via propriedade

Experiência pioneira do Cantagalo com regularização fundiária aponta caminhos para o enfrentamento do déficit habitacional e o combate à violência, mostrou o 25º. OsteRio

Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 2009
Rosa Lima


"Favela só será bairro quando obtiver o pleno exercício do direito essencial da cidade que é a propriedade. Este é o desafio final: empoderar os habitantes da favela como cidadãos da sua cidade. O programa que dará a volta final nos bandidos, arredondando a bola quadrada da associação cruel da favela com violência, é a conquista do título definitivo da propriedade pelos moradores, organizados para comandar seu próprio espaço".


Foi partindo dessa premissa que o Instituto Atlântico, ONG cuja missão é testar na prática políticas públicas inovadoras, desenvolveu um projeto inédito de titulação plena de moradias de uma favela, atualmente em fase de registro em cartório. Os felizes futuros proprietários das 1.485 residências são os cerca de 6 mil moradores do Morro do Cantagalo, favela fincada entre Copacabana e Ipanema, na Zona Sul do Rio.


Uma das beneficiárias do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, e, mais recentemente, de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), do governo do estado, a comunidade do Cantagalo agora está prestes a ser "de direito" o que já é "de fato": dona de suas próprias casas. Na prática isso significa poder fazer benfeitorias, alugar, vender ou usar o imóvel como garantia num negócio, como faz qualquer proprietário "do asfalto".


Significa mais. Como bem destacaram, na segunda-feira, 7 de dezembro, o presidente do Instituto Atlântico, Paulo Rabello de Castro, e o diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, Joaquim Falcão, convidados pelo 25º OsteRio para falar sobre O direito à propriedade na experiência transformadora do Cantagalo. Para um morador da favela, o direito à propriedade, garantido pela Constituição, significa, sobretudo, poder contar com legítima defesa policial ou judiciária contra o esbulho, a expulsão por um bandido ou mesmo a remoção pelo próprio poder público. Foi o melhor recado da noite.


Resposta plural

Há mais de 30 anos envolvido com o tema da regularização fundiária, o professor Joaquim Falcão defendeu duas teses básicas para o público da Osteria Dell'Angolo: a primeira é que construir casa é necessário, mas insuficiente para resolver o enorme déficit habitacional do país. A saída, diz, é regularizar o que já existe.


Explica-se: o estoque negativo de imóveis no país, segundo estimativas da FGV, é de cerca de 7 milhões. No Rio, beira os 300 mil. A maior parte desse estoque está entre a população que ganha até três salários mínimos e não pode arcar com um financiamento imobiliário. O poder público não tem orçamento para construir tanto. "A boa notícia é que depois de anos ausente, o governo está agora enfrentando o problema habitacional. Mas não se trata de escolher um ou outro programa, temos que lançar mão de tudo e adotar uma estratégia de massa de regularização urbana", defendeu Falcão.


A segunda tese dele é que o que vai consolidar o estado de direito no Brasil é a regularização do direito de propriedade. "Não se pode falar em estado de direito em um país em que 40 milhões de pessoas já começam o dia fora da lei. A importância do Projeto Cantagalo é dar o primeiro passo para reverter essa situação", disse Joaquim Falcão, cuja escola abraçou o projeto ao abrigar uma clínica para propor estratégias jurídicas de enfrentamento da questão.


Princípio da auto-organização

Paulo Rabello de Castro fez coro com o diretor da FGV e expôs outro motivo de se engajar num projeto como esse: "O Instituto Atlântico identifica a organização fundiária de uma comunidade como elemento vital de um amplo projeto de segurança para os próprios moradores e bairros circunvizinhos. O regime da propriedade plena é como um antibiótico de amplo espectro agindo contra todos os aspectos da vida precária, da vida "favelada".


E contou como o Projeto Cantagalo foi desenvolvido. Com o apoio da Associação de Moradores local, de dois escritórios de advocacia, do Projeto Segurança de Ipanema e verbas do Instituto Gerdau, saiu em campo. O primeiro passo foi mobilizar a população do morro para que ela mesma opinasse sobre a oportunidade da iniciativa. Afinal, como fez questão de frisar Paulo Rabello, o ponto de apoio central do projeto é o princípio da auto-organização. Uma enquete junto aos moradores não deixou dúvidas: 92% declararam querer o título de propriedade de seus imóveis.


Reeditou-se o jornal local, o Canto do Galo, cujo primeiro número convocava os moradores a passarem uma procuração, sem ônus, para que os advogados pudessem agir em seu nome, e partiu-se para o trabalho de campo de recenseamento. Quatro meses depois, o levantamento topográfico e o cadastramento das 1,5 mil residências já estavam prontos. "Fica um recado para as prefeituras: o recadastramento é bom, barato e rápido. Pode ser concluído no exercício de apenas um mandato", disse Paulo Rabello.


O emaranhado jurídico é o que mais complica. Mas duas ações recentes do poder público - uma federal e outra estadual - desobstruíram artérias importantes para a oxigenação do processo. O governo Lula, cujo programa Minha Casa, Minha Vida, trata, pela primeira vez, da regularização fundiária. E o governo Sérgio Cabral, que deu passo decisivo ao aprovar na Alerj emenda constitucional abrindo a porta para a propriedade plena na favela. "Agora é agir, com igual eficácia, na aplicação da nova lei", defendeu o presidente do Instituto Atlântico.


Resistência da elite

A plateia, que contou com a presença de diversos profissionais envolvidos de uma forma ou de outra com o tema, trouxe boas contribuições ao debate. O empresário Daniel Plá, há anos atuando nas comunidades do Cantagalo e do Pavão-Pavãozinho, falou da enorme resistência da elite e dos políticos à titulação dos imóveis nas favelas e lembrou: "Quando lançaram o PAC, o presidente e o governador prometeram dar título de propriedade aos moradores, mas até hoje nenhum saiu. Construíram um prédio novo na comunidade e distribuíram título de posse. Mas posse não é propriedade. Temos que ficar em cima".


A diferença fundamental, explicou Zeca Borges, do Disque-Denúncia, é que com a posse, o imóvel não tem liquidez nem pode ser usado como garantia. Uma das ganhadoras do prêmio instituído pelo governo do estado para os melhores trabalhos em finanças públicas, a economista Maria Isabel Andrade estudou os impactos da regularização fundiária numa favela do Caju, na Zona Portuária, e sugeriu: "Dar continuidade a esse processo de titulação nas favelas é muito importante para que possamos entender quais os reais efeitos econômicos da medida".


A arquiteta Daniela Engel, responsável pelo projeto urbanístico do PAC no Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, mostrou-se preocupada se a distribuição de títulos de propriedade aos moradores não geraria especulação imobiliária e ameaçaria as relações na comunidade. Alba Zaluar, por sua vez, afirmou que a especulação já é fato ("construir em favela virou um ótimo negócio", disse) e defendeu que se instituam desde já mecanismos inibidores dessa prática. Mas foi enfática ao defender a titulação: "Fiquei muito feliz de conhecer o projeto. É isso que garante o empoderamento real da população. O tráfico e a milícia só se fizeram porque as pessoas não tinham a propriedade das suas casas", afirmou.


A dúvida, levantada por alguns, se os moradores estariam dispostos a pagar pela contrapartida da titulação, isto é, impostos e taxas de serviços públicos, mereceu uma sugestão de Fernando Mousinho, da NET: assim como fez a empresa, ele sugeriu a adoção do conceito de estrutura urbana deficiente, que permite legalmente a cobrança de tarifas diferenciadas nas favelas.


Presidente da Associação Comercial do Rio e da Light, engajada no projeto de inclusão social das comunidades, José Luiz Alquéres lembrou, por fim, que a ocupação das favelas é um processo histórico de mais de cem anos e que a abordagem para se enfrentar a questão não pode ser só urbanística, econômica ou jurídica, mas social. "Mas há solução, e o caminho é esse mesmo, de quem está subindo o morro. Como fez o Paulo, com seu Instituto Atlântico", concluiu.

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